Bastaram apenas as esperadas consequências, em número de ocorrências de urgência, da normal mudança de estação, para que as “simples medidas de racionalização” levadas a cabo pelo ministro da saúde no que respeita à rede de urgências, mostrarem na prática o que valem. O congestionamento nos serviços de urgência nos hospitais foi tal que o ministro se viu obrigado a emendar a mão no que respeita ao encerramento dos SAP e outros serviços de urgência dos centros de saúde. Emendar a mão, mas pouco, já que apenas temporária, excepcionalmente e devido em concreto ao “surto gripal” se manterão abertos os serviços de urgência dos centros de saúde até às 22 ou às 24 horas (em Lisboa e no Algarve desde o momento do anúncio até ao fim do mês de Fevereiro de 2007, ou seja, 3 semanas, nas outras regiões de saúde quando e pelo período que a situação de congestionamento nas urgências hospitalares obrigar).
Teremos, portanto e se a vontade do governo vingar, futuramente e dependendo das previsões da DGS, uma rede de serviços de urgência “adaptável” às necessidades. Claro que adaptável à versão do governo do que são as necessidades. Também, segundo o ministro, nessas situações excepcionais, serão oferecidos os analgésicos e os anti-piréticos para as 48 horas seguintes à consulta. Uma espécie de compensação pelo encerramento das urgências dos centros de saúde durante o resto do tempo. Este é o “negócio” que o ministro nos propõe: aspirinas para 48 horas em troca da aceitação do encerramento dos SAP e de outros serviços de urgência dos centros de saúde.
Se aceitarmos hoje, amanhã veremos que um novo negócio do mesmo tipo nos será proposto. As respostas são tão evidentes que nem seria preciso perguntar, mas perguntamos: quando os serviços estiverem completamente desmantelados, haverá médicos e meios disponíveis à espera dessas aberturas excepcionais de tempos a tempos? A DGS irá prever acertada e atempadamente os períodos de necessidade? Que teremos então? Uma nova história, possivelmente um novo “estudo técnico” e uma nova proposta que terá como resultado o que já sabemos: mais sacrifícios, mais doença, mais morte e mais miséria para o povo.
Convém dizer que tudo isto é a parte invisível do Processo de Requalificação das Urgências, aquilo que a comissão técnica de apoio não escreve mas pressupõe. Para esconder a dimensão do que o governo pretende, o relatório fala genericamente de urgências (o que inclui as urgências hospitalares e as urgências dos centros de saúde) mas quando se refere às urgências existentes enumera apenas as urgências hospitalares.
Daqui conclui um “saldo positivo”: de 73 as urgências passam a 83, os fechos são compensados com aberturas noutros locais “diminuindo a quantidade de portugueses que estão a menos de 45 minutos de uma urgência com capacidade cirúrgica”. Na conversa do governo o “saldo positivo” também é obtido de outra maneira: das 73 urgências hospitalares existentes (todas elas com capacidades médico/cirúrgicas), 33 não constavam formalmente da rede de referenciação de urgência/emergência de 2001, portanto, realmente e perante o Estado só existiriam 40 urgências e com a implementação da proposta passarão a haver um total de 41, SUMC mais SUP (estes com capacidades verdadeiras, porque os outros as teriam “falsas” ).
Foi através desta insinuação que o governo, na sua propaganda, proclama uma melhoria na qualidade da assistência (o que não deixa de ser verdade: passa da "qualidade" de não existência formal para a "qualidade" de reconhecida formalmente), escondendo-se cobardemente atrás da nebulosidade do relatório da dita comissão técnica. Aliás a “melhoria” propagandeada na quantidade de portugueses que ficarão a menos de 45 minutos de uma urgência com capacidade cirúrgica só se consegue calcular desprezando a existência real das 33 urgências hospitalares formalmente inexistentes.
Outros números e objectivos propostos “interessantes” podem-se extrair do dito relatório (principalmente da sua versão para discussão pública), apesar do enorme cuidado posto pela dita “comissão técnica” nos compromissos a assumir e no enegrecer da situação presente para depois dizer que a proposta melhora a situação. Por exemplo quando são definidos os critérios de decisão (estranho é que uma “comissão técnica” defina critérios de decisão, mas continuemos...) mais à frente chamados de avaliação, no ponto 4, “pontos de rede por capitação”, “considera-se aceitável:
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Possibilidade de acesso a Serviço de Urgência Básico em Centro de Saúde, se a população for superior a 40 000 habitantes na sua área de influência, ou se o tempo de trajecto a um Serviço de Urgência maior do que 60 minutos
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Possibilidade de mais do que um SU Médico-Cirúrgico num raio de 60 minutos de tempo de trajecto, se a população for superior a 200 000 habitantes.
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Um Centro de Trauma por cada 1 000 000 de habitantes“.
Mais à frente, no relatório para discussão pública, conclui na mesma matéria (capitação), mas em resultado da aplicação de todos os critérios, os seguintes rácios a nível nacional: 1SU/120 000 habitantes; 1SUMC ou SUP/260 000 habitantes.
Não explica como podem acontecer estes números menores que os mínimos esperados, dado que da aplicação geral dos critérios referidos os rácios seriam 1SU/40 000 habitantes e de 1SUMC ou SUP/200 000 habitantes ou maiores (de grandeza, por exemplo, de 1SU/30 000, ou 1SUMC ou SUP/180 000). Ou seja, o que é indicado ser possível acontecer nunca ocorre, ou ocorre em situações muitíssimo raras, e só é indicado, possivelmente, para permitir enquadrar favores a "clientes".
Outro aspecto é a redacção da alínea a, particularmente sugestiva do que vai acontecer aos SAP: só permanecerão abertos quando o Centro de Saúde atender mais que 40 000 habitantes ou se estiverem a mais de 60 minutos de um hospital com serviço de urgência (aliás, os contemplados, já fazem parte da proposta: são os 26 “novos” SU Básicos em Centros de Saúde).
O governo fala também em ganhos da equidade entre os cidadãos no acesso aos serviços, mas como explica que, por exemplo, na região de saúde do Norte os rácios a que se chega sejam 1SU/177 990 habitantes, 1SUMC ou SUP/287 522 e 1SUP(enquanto não se fizer o investimento necessário em Gaia e em Vila Real)/1 245 930 (valores que são respectivamente 67%, 83% e 80% dos valores nacionais), ou também na região especial do Porto (de Aveiro a Braga) sejam 1SU/179 900 habitantes e 1SUMC ou SUP/287 841 (respectivamente 67% e 83% dos valores nacionais)? Os valores actuais são bem mais iguais à média nacional, 108% e 106% respectivamente para a região de saúde do Norte e para a região especial do Porto no que respeita à totalidade das urgências hospitalares. Aqui como em toda a prática do governo a regra parece ser a mesma: onde é que se concentram os pobres? É no Norte? Se é, então é aí que temos de “poupar”, pois os pobres pagam poucos impostos (é o princípio do utilizador/pagador, tão do agrado do governo, levado ao seu extremo mais abjecto).
Muito mais haveria que dizer dos critérios como, por exemplo, a utilização da base concelhia em vez da área de influência do serviço de urgência para mobilidade sazonal da população ou para o risco industrial, a promessa de investimento em novas Viaturas Médicas de Emergência e Reanimação, do reequipamento de alguns SU Polivalentes e futuras consequências (fecho da urgência do Santo António?), da redacção especialmente estudada para que uma decisão de pôr os SUB pior que os actuais SAP possa estar dentro do “parecer técnico”, a “convergência” e o “consenso” entre a dita “comissão técnica” e a DGS e todas as Administrações Regionais de Saúde, por sinal todas ou quase todas nomeadas pelo actual governo, a ausência de qualquer referência à discussão pública na versão final do relatório, nomeadamente no que se refere às alterações relativamente ao primeiro documento (o Dr. Fernando Rosas, como de costume e pelo que disse na televisão, não leu nem um nem outro relatório, os outros intervenientes no Debate da Nação "acham", como lhes convém, que a "comissão técnica" é técnica e portanto inquestionável), etc., etc..
Mas não se fica por aqui, um novo “estudo” está na calha, agora da comissão avaliadora da sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde, onde volta a figurar a possibilidade da criação de um novo imposto, visto que poderá haver uma falência do sistema, embora, como de costume o ministro abjure tal opinião.
Valença, Chaves, Vila Pouca de Aguiar, Vendas Novas, Montijo já vieram para a rua. Outros também virão. O tempo é de luta. Cada vez mais política, cada vez mais consciente. Por isso gritamos:
POR UM SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE EFICAZ E EFICIENTE AO SERVIÇO DO POVO!
ABAIXO O GOVERNO SÓCRATES/CAVACO!